Os chineses parecem uma das mais belas variedades
da espécie humana. Muito bem dotados, nos mais diversos pontos de vista,
mostrariam, no entanto, uma insuficiência quanto ao temperamento religioso.
Alguns atribuem tal "deficiência" a "raça"; outros, mais numerosos, a uma
deformação cultural adquirida. Essa malformação explicaria a falta de
solicitude da China por responder positivamente às repetidas incursões do
cristianismo. A opinião que aqui veiculo sem, no entanto, endossá-la, é
antiga. Pesa ainda em muitas mentes. Sem malícia excessiva, lembro aqui um
quadro do Soulier de satin (O Sapato de Cetim, trad. Vozes, Petrópolis
1970), que mostra a capacidade chinesa para ir ao fundo das coisas e não se
deixar levar por qualquer história.
A cena é entre um proselítista cristão e seu
servo chinês. O pobre labrego acaba de ficar sabendo que possui uma alma, e
que este objeto é algo raro, de preço altíssimo. Logo começa, entre eles,
uma transação comercial, interminável...
Do episódio, irreverente e quase sórdido, tiro
esta observação de bom senso: vai demorar muito para que um homem, ocupado
da manhã à noite tentando conseguir os meios de subsistência, descubra
possuir uma alma imortal e possa dar-lhe o justo valor. Creio também que no
"comércio das almas" a oferta nem sempre vai de par com a procura, a não ser
que possa despertá-la e motivá-la. Talvez os chineses nem sempre tenham
tempo para serem religiosos, como o somos nós mesmos, ao menos
aparentemente. Quem sabe, sua procura religiosa não se orienta de acordo com
nossa oferta. Não haverá muito exagero e boa dose de ilusão nos juízos que
foram proferidos sobre a insuficiência religiosa que lhes é atribuída?
De início, exporei duas teses: uma,
exageradamente negativa; outra, ligeiramente otimista quanto à sensibilidade
dos chineses em matéria religiosa. Destacarei a parte de verdade que se pode
retirar, tanto de uma como de outra. Esboçarei, na conclusão, a importância
da tradição espiritual taoísta, para um eventual anúncio da Revelação de
Deus, como a temos em Jesus Cristo. Longe de mim pretender privilegiar a Via
taoísta em detrimento da Via confuciana, mas em um artigo tão breve não se
pode abordar a questão sob todos os ângulos importantes.
1. Censuras
A tese que denominei "negativa" vem de pessoas
que conheceram os chineses em uma freqüência diuturna e provaram todo o
sabor de uma amarga incompreensão, indiferença ou repulsa. Sistematizou-se
por ocasião do mau período que a Igreja e a China conheceram: a época da
Querela dos Ritos (1).
Os chineses adoram seus antepassados; prestam
culto idolátrico a Confúcio e a outros heróis culturais, pelo ministério de
um imperador, cuja pessoa é sagrada; oferecem ao Céu um culto que recusam ao
verdadeiro Deus. Quanto ao povo, acorre em massa aos inúmeros templos das
cidades e aldeias e faz suas devoções ao Imperador de Jade, substituto mais
familiar e mais acessível que o Céu. Desde o nascimento até o sepultamento,
todos os momentos importantes da existência são como que envolvidos em um
manto de superstições. As liturgias celebradas pelos monges budistas e pelos
sacerdotes taoístas, tanto em templos como em residências particulares, as
festas pagãs do calendário, as formas mais extravagantes de adivinhação,
tudo isso atesta à saciedade que os chineses têm uma religiosidade colocada
a serviço de interesses materiais, pervertendo completamente o verdadeiro
espírito religioso.
Esse quadro pouco lisonjeiro já se acha um tanto
antiquado e ultrapassado. Mesmo admitindo algumas de suas observações, tudo
isto prova que os chineses são natural ou culturalmente incapazes de um
sentimento religioso autêntico? Esse juízo se fundamenta, a meu ver, em um
erro de avaliação que chamarei de idealista, pouco cristão. Os cristãos, com
efeito, não são idealistas, mas sim discípulos da Encarnação. A Encarnação é
justamente o carisma especifico da China. Seu povo é composto de seres
vigorosos, ativos, habilidosos, talentosos, práticos, capazes de logo
captarem as propriedades das coisas e a oportunidade dos momentos. Sua
capacidade vital é impressionante. Outrora eram apelidados homens Celestes,
mais tarde seriam chamados Terrestres... Será que isto os faz incapazes para
se elevar a um pensamento de Deus, digno d'Ele?
2. Elogios
Acabei de lembrar, deformando um pouco, a posição
negativa daqueles que julgam, um tanto apressadamente, mas não sem alguma
aparência de razão, que os chineses têm alguma deficiência quanto ao
sentimento religioso. Devo mencionar, para ser justo, a opinião contrária.
Considerada em perspectiva claramente cristã, ela prejudica ainda mais, a
meu ver, a reputação dos chineses. É habitual aos admiradores incondicionais
da sabedoria chinesa. A Europa, no século XVIII, influenciada pelos
"Filósofos" enciclopedistas, geralmente franceses, chegou a esta
extravagância: Admirem a sabedoria de um povo que se contenta em organizar,
pela lei e pela educação moral, a convivência dos mortais nesta terra!
Confiam a homens, escolhidos entre filósofos e letrados, a missão de educar
os seus filhos e a responsabilidade de administrar as cidades. São homens
que respeitam as opiniões e crenças de cada um. Quanto a eles mesmos, não
costumam aderir a nenhuma outra, exceto as que encontram em seus livros
tradicionais. Praticam a tolerância, sobretudo por não desejarem conhecer
senão o homem segundo a natureza. De Deus, que chamam Céu, têm apenas uma
idéia genérica embora sublime. Dão muito valor a uma conduta correta e pouco
às práticas religiosas. Eis uma declaração bem clara de uma religião chinesa
que não se preocupa muito com o sentimento religioso. Não a encontraremos,
em parte alguma, sob a forma textual que lhe dei aqui. Seria, no entanto, o
deísmo chinês, tal como o poderia imaginar um francês do século XVIII.
Baseando-se naquilo que as diversas Memórias, Descrições e a correspondência
dos jesuítas da Missão de Pequim divulgavam a respeito da "religião" dos
chineses e da mentalidade dos letrados, os "filósofos" utilizam essa
informação para atacarem o despotismo da monarquia e vergastar o
obscurantismo da Igreja. Tomavam como "Luz" qualquer claridade que lhes
viesse do distante império chinês.
Resumirei o que precede afirmando que são moeda
corrente e velha as generalidades benevolentes ou malévolas a respeito dos
chineses. Lembrei tudo isso para não precisar voltar mais a tais questões, e
porque ainda persistem muitos preconceitos que impedem um conhecimento
arejado do espírito e dos comportamentos religiosos dos chineses.
3. Letrados Chineses Cristãos
Em suma, para apreciar devidamente os chineses,
importa sair da companhia dos ocidentais e dirigir-nos a chineses cristãos,
que possuem experiência pessoal de Jesus Cristo e conhecem pessoalmente o
próprio povo e, ponto muito importante, permanecem apegados à sua cultura
tradicional, embora abertos ao resto do mundo. Que dizem homens que lêem o
Livro dos Poemas, no original, e aí rastreiam os passos de Deus?
Que praticam o Livro das Mutações e ponderam com
ele o incessante deslocamento das forças que deformam e reformam a figura
temporal do mundo? Que meditam sobre a história chinesa e dela auferem
modelos para a história mais geral dos grupos humanos? Que dizem homens que
estão familiarizados com Confúcio e Mêncio, para eles eternamente presentes?
Que choram de alegria com Mêncio anunciando que já é hora de renovar o que
existe de feudal no ensinamento de Confúcio retemperando-o no fogo do amor
universal? Que dizem homens que, espantados com a férrea dureza das
declarações dos legistas, reconhecem que a anarquia e a hipocrisia estão
latentes em toda sociedade de dimensões gigantescas? Que dizem homens que
apreciam ouvir Lao-tseu e Chuang-tzu afirmando que a poeira, de que foi
tirado o homem, é uma poeira cósmica, animada por um fogo inextinguível, e
que este é o problema dos problemas: como pode sobreviver o efêmero na vida
perdurável da animação cósmica? Que dizem esses homens que encontram numa
paisagem, num quadro, numa porcelana ou em uma sinfonia, transpostas, as
questões últimas do destino de cada um de nós? Que dizem esses espíritos,
cuja cultura, grande como o oceano, cresce sem cessar alimentando-se com
todas as culturas particulares, a eles acessíveis graças ao conhecimento
profundo das línguas ocidentais? Que dizem esses homens, para quem o homem é
apenas uma produção particular saída da Terra, fecundada pela graça do Céu,
que determina um destino particular a cada um? Que dizem eles, justamente
eles que possuem a poderosa moral confuciana e a liberdade da
espiritualidade taoísta, ao se verem acusados de impotentes em matéria
religiosa!?
A ninguém recomendo que lhes diga: "Vocês não têm
o sentido da transcendência de Deus, têm um conceito muito vago de Deus. Por
isso não podem estabelecer uma relação pessoal com ele. Por esse motivo, é
tão difícil um diálogo entre cristianismo e pensamento chinês!"
A pelo apenas a uma declaração de John Wu,
lembrada por seu amigo e companheiro inseparável, o professor Paul Sih (2).
Declara ele que o confucionismo e o taoísmo permitem abordar, sob ângulos
diversos, o mistério do homem, diante de Deus, em um relacionamento
autêntico, em espírito e em verdade.
John Wu, inicialmente, lembrava um dístico do
Salmo 96:
"Uma nuvem sombria o (Javé) envolve, a justiça e
o direito são o fundamento de seu trono",
e então comentava, com todos os recursos de uma
conversão a Jesus Cristo, conversão para toda a vida:
"O confucionismo me preparou para apreciar a
segunda proposição; o taoísmo me preparou para apreciar a primeira. Mas só o
catolicismo me permitiu captar o texto em seu conjunto".
O que John Wu diz aí, ele o escreveu muitas vezes
em outros contextos, praticamente em cada obra sua (3). John Wu pensa assim;
todos os intelectuais chineses pensam da mesma forma. A força de Deus, que
atua em todo homem espiritual - não excluindo os não- cristãos - permite que
encontremos no confucionismo o sentido da transcendência moral que habitava
Confúcio e faz resplandecer no taoísmo o sentido místico que inspirava as
obras de homens como o autor do Livro da Via e da Virtude (4). De modo
geral, os chineses que viviam do Céu foram adeptos da transcendência e se
empenharam - como o demonstra sua vida - de corpo e alma, em um caminho
espiritual.
É a realidade da vida religiosa dos chineses, que
nos interessa, ou será o tolo projeto daqueles que procuram no pensamento
chinês teses religiosas, quem sabe veneráveis, mas historicamente marcadas
por um esforço mental que ainda não poderia levar em conta o que é cristão?
Não podemos pedir aos chineses, formados no seio de uma civilização que
apenas tardiamente conheceu o cristianismo, que tenham conceitos e mostrem
aspirações de teor ocidental cristão, tanto com respeito à transcendência
divina como com relação ao homem e ao mundo. Temos que exigir dos chineses
aquilo que Platão pedia: buscar a Verdade com toda a alma.
Como é possível pedir-lhes, dado que eles mesmos
não se vêem sob um ponto de vista personalista, que mantenham relações
pessoais com Jesus Cristo e com Deus? Que Deus seja pessoal, fundamento da
existência de pessoas humanas, eis talvez uma aspiração da consciência; mas
não é um dado, certamente, da religião natural!
4. Transcendência Confuciana
Deixo provisoriamente de lado o exame do
confucionismo de Confúcio e de Mêncio. Ambos mencionam e sugerem, com muita
delicadeza, o papel do Céu na direção do universo, sua presença no homem, o
esforço indispensável para reintegrar a consciência do homem em sua pureza
original, a fim de refletir a luz celeste. Estabelecem normas de conduta que
o homem deve seguir, para que das profundezas da consciência possa tirar as
disposições de justiça, no sentido bíblico do termo, e as regras da vida em
sociedade que se expressam em ritos e cerimônias, mas cuja origem é
interior. Tudo isto permite afirmar a existência, para Confúcio e antes
dele, de um mundo religioso chinês sensível à transcendência divina,
fundamento da espiritualidade pessoal e da moral transcendental. Depois de
ter mostrado rapidamente o sólido fundamento do confucionismo clássico,
passo agora a falar da mística taoísta que, no pensamento dos chineses
cultos, não é senão uma outra maneira de abordar ou trilhar a Via do Céu.
5. Transcendência da Via e da Virtude
Eis a posição que eu defenderia: os chineses têm
no taoísmo uma concepção absolutamente transcendente e radicalmente imanente
da Via do Céu. A Via dos taoístas é a Via do Céu. "A Via do Céu" é como que
uma determinação mais precisa. Com isto a distinguimos das mil outras vias
que são os trilhos e caminhos traçados pelas idas e vindas dos homens. A Via
se manifesta por sua Virtude. A Via e sua Virtude: eis o Real invisível que
se manifesta. É o Real como o podemos perceber e afirmar, quando somos um
ser- no- mundo, É a regra do agir e, ao mesmo tempo, o movimento misterioso
do "Retorno" de tudo aquilo que é provisoriamente estilhaçado em Dez mil
seres. A Via é transcendente, impenetrável, inefável... A transcendência da
Via não constitui obstáculo à intimidade com a Via. O homem se relaciona com
ela como um bebê com sua mãe: e sua intimidade é tanto maior quanto mais
desaparecerem da consciência as diversas distinções mentais, numa como que
inconsciência, que não seria justo denominar consciência de grau inferior.
Tendo em vista que muitos autores acusam os taoístas de monistas e
panteístas, sou obrigado a defendê-los de tal censura. Os grandes textos
taoístas primitivos não são nem monistas nem panteístas, contanto que os
entendamos e vejamos na mentalidade daqueles que os redigiram.
Cito, por exemplo, algumas linhas da obra de
Chuang-tzu, no capitulo VI, texto mais seguro e mais acessível que outros.
Eis como traduzo o titulo do capítulo VI: Grande Ancestral, nosso Mestre;
"A Via: via transbordante e mesmo assim fiel;
Não - agir no não - visível;
expansiva e inapreensível, que se pode ter, mas
não ver; tem seu próprio caule e suas próprias raízes; anterior ao Céu -
Terra, desde sempre e para sempre, subsistente.
Espíritos do mundo inferior, espíritos soberanos,
dela todos eles recebem sua espiritualidade.
Produtora do Céu, Produtora da Terra, mas fora da
duração.
Ela remonta à mais alta Antigüidade, mas não é
velha..."
Comentário: A Via manifesta vitalidade
transbordante de animação, mas é segura, fiel, constante, digna de
confiança. Se bem entendido, seu agir próprio não é o dos seres
particulares. Chama-se não - agir, ou seja, um agir bem real mas invisível e
de acordo com a não- interferência. Por causa dela é que acontece esse
admirável aparecimento do visível no mundo fenomenal e do inteligível no
mundo essencial. Faz e deixa jorrar. Ao nível da Via, não existe diferença
entre fazer e deixar fazer. Mas é a ela que temos de remontar, para
encontrarmos o Grande Ancestral, de onde procede tudo que é. "Nemo tam
Pater", Nossa Mãe, que se acha além do Céu - Terra. Como é dela que tudo
procede, o discurso humano a pressente, mas não consegue dize-la, muito
menos explicá-la, estruturá-la ou perscrutá-la. O estruturalismo seria uma
tolice, aos olhos dos chineses, caso o quiséssemos tomar como substituto da
Via; seria uma boa formulação, se a tomássemos como a manifestação digna de
crédito dos seres que são produzidos ou que se produzem. Ser produzido
sempre aparece como produzir-se. Mas sempre se exige, de qualquer forma, a
antecedência, a ancestralidade da Via. A Via por sua Virtude (que é como que
uma conseqüência da Via) faz moverem-se Céu e Terra, em um movimento cuja
auto - regulação admite leve oscilação em tomo da Constante (a Via). Se
falta alguma coisa, se algum ser sai de seus trilhos, isto não abala a Via.
Ela gira sempre sem falha e sem desgaste (Lao-tseu: O Livro da Via e da
Virtude, cap. 25). Eminente, a Via é um Soberano, um Mestre igualmente, pois
ensina enquanto é. "Eu brilho de tal modo em minha criação", dizia Péguy,
comentando o Salmo "Caeli enarrant..." De maneira semelhante, o Império não
poderia existir sem um Imperador, o Céu - Terra, e tudo aquilo que ele faz
desabrochar não poderia existir sem a Via. O Imperador que imita a Via,
obedecendo ao Céu e sempre atentamente submisso à Terra, exerce sobre todo o
Império uma autoridade de influência que atinge em cada ser seu agir próprio
natural. Tirem ao soberano o barrete imperial e o manto semeado de nove
dragões; tirem-lhe os assessores e todo o séquito de cortesãos, seu trono, a
sala do trono e até seu palácio e sua capital, que mesmo assim continuará
sendo o soberano. Tudo que se move no império, só se move por ele. Sua
imobilidade, seu silêncio, sua invisibilidade, longe de lhe diminuir o
poder, tornam-no mais espiritual, mais eficaz, mais majestoso. Assemelha-se
então à estrela polar que, imóvel, silenciosa, mal e mal visível, ordena em
torno de si todo o movimento aparente do Céu...
Alguém poderia perguntar: a Via produz ou gera
alguma coisa? Que nexo pode manter com aquilo que é gerado ou produzido? O
chinês antigo não faz essa distinção. Mas então você afirma que a terra
produz ou gera? Não existe resposta para essas perguntas, enquanto você está
preso apenas ao estudo do vocabulário. Mas podemos apreender o pensamento.
Ele é análogo ao que se percebe no texto do Gênesis. Elohim diz: "Que haja
luz, e houve luz" (Dhorme), ou então: "Disse Elohim: a luz será e a luz é"
(Chouraqui). Em ambas as traduções, a relação entre Elohim e a produção da
luz é imediata, sem esforço, natural. É o agir de Deus por não - agir, por
não - interferência. No livro do Gênesis, Elohim fala, e sua palavra é
eficaz. Em uma versão chinesa da Criação, a Via não fala: ela é e seu ser é
eficaz. O antropomorfismo do Gênesis é mais acentuado, mas sabe muito bem o
autor do livro que Deus, Elohim, cria sendo, ou, se o preferirmos, a palavra
de Elohim é completamente espiritual. Sob o ponto de vista da
transcendência, Elohim e a Via se acham, com respeito aos seres gerados ou
produzidos, em uma relação de ascendência que os situa além do criado: são
de fato perfeitamente transcendentes.
Não posso desenvolver aqui um ponto que tem
relação com esta questão da Transcendência da Via. O ponto é o seguinte:
junto à Via se acha sua Virtude. Não seria temerário, creio eu, fazer da Via
e da Virtude um par: o Real em si e sua manifestação eficaz. Apesar de sua
transcendência absoluta, a Via teria, em si mesma, mas contrapondo-se a ela,
a Virtude. São Dois que fazem apenas Um. A Virtude saiu da Via, mas a Via
não saiu da Virtude. No capítulo 38 de Lao-tseu, expressa-se com o máximo de
clareza o relacionamento entre Via e Virtude. Voltando ao texto de
Chuang-tzu, comentado acima (Chuang-tzu, cap. 6), vemos que a Via se mantém
simultaneamente acima dos seres e no intimo de tudo aquilo que dela procede.
Ela nunca é aquilo que faz, e tudo que existe dela procede. Pode-se
encontrar melhor transcendência que a imanência absoluta, ou melhor,
imanência que a transcendência absoluta? O engenheiro que faz o projeto do
Concorde ou de uma ponte como a Rio - Niterói não é imanente a essas
construções e ao mesmo tempo transcendente a todas essas obras? Di-lo nosso
texto, formalmente: A Via faz com que existam espíritos, mas ela mesma não é
um espírito; faz com que existam Céu e Terra, mas não é elevada como o Céu
nem abissal como o seio abissal da Terra. Terra e Céu duram, mas a Via se
acha fora da duração. Ela se propaga, comunica e transmite, mas aqueles que
recebem sua influência não a possuem, não se apropriam dela.
6. Sentido Religioso do Não-agir
Do que se disse acima podemos concluir que a
Transcendência, para os taoístas, exprime uma presença (divina) que supera o
homem e o próprio Céu; e que, de modo semelhante, a Imanência é, para eles,
uma presença (divina) mais íntima ao homem que seu próprio coração e que o
abismo das fontes terrestres de onde vêm as suas essências e o seu querer
ser. Tudo isto é elementar e não bastaria para fundamentar a originalidade
do pensamento chinês. É mister, segundo o movimento lógico natural aos
chineses, perguntar ainda, visando o cerne da questão: onde e como é que se
faz o "admirabile commercium" entre Transcendência e Imanência? Onde?
Certamente no vazio intermediário. Como? Certamente pelo não - agir. O que
caracteriza um pensamento chinês é a capacidade para exprimir o nó das
contradições, o momento das tendências antagônicas, a reunião que permite
àqueles que tentam unir-se, encontrar-se e encontrar a vida. Existe sempre
um meio aparentemente vazio e sempre ativo. Segundo o pensamento chinês,
Transcendência e Imanência - aspectos antagônicos do Real, que sempre nos
supera - são o agir da não - interferência: o agir do não- agir - o wei wu
wei. Eis como o expressava Lao-tseu (cap. 3), falando dos Santos Reis da
Antigüidade, que são a imagem humana mais perfeita da Via:
"Os Santos... agiam por seu não - agir, e nada
escapava à sua direção".
O que fez o Céu e a Terra é tão intimo a esse Céu
- Terra, que ele aí se exprime pelo agir natural dos seres, agir que revela
a sua presença de não - agir. O não - agir (divino) permite a liberdade do
homem e a espontaneidade de todos os outros seres vivos e do próprio mundo
inanimado (inanimado, para nós, Ocidentais!). O silêncio e a formidável
ausência sensível de Deus permitem o Cântico do mundo e o fervilhar de tudo
aquilo que tem forma e colorido.
7. A Religião Pessoal
Vou concluir minhas reflexões. Lembro de novo o
que há de insuficiente na religião dos chineses. Sem dúvida, os personagens
que aparecem no palco da tradição escrita marcam sua "presença". Mas não
possuem aquilo que chamamos consciência "pessoal". O personalismo de Mounier
nada tem de chinês. Sensíveis ao mistério angustiante da existência efêmera,
eles submetem ao nascimento e à morte, mais como a movimentos da natureza do
que a acontecimentos de um devir pessoal. No entanto, em seu comportamento
diário dão provas de retidão e vigor moral. Fazendo-se discípulos de uma
"Via", procuram fazer aquilo que o Céu lhes manda. Céu, Via do Céu, Grande
Ancestral, Nosso Mestre, tormento íntimo, presente e sempre fora do alcance!
Receosos do antropomorfismo da noção de Deus, geral nos tempos antigos,
preferem dedicar-se a "Isto" que é mais que uma pessoa humana. São
"probabilistas", não no sentido moral, e sim metafísico. Não têm segurança
diante de Deus, incertos quanto a "Isto" que ele é e, portanto, quanto a
"Isto" que são, eles mesmos.
Como criticá-los? Na pungente incerteza, "agir
como se" seria crime. Ainda mais que o "como se" não se refere ao fato da
existência de Deus e de si mesmo, mas à impossibilidade de saber "quem" é "o
que". E nós, cristãos, se não soubéssemos - na fé - que o Deus transcendente
se fez próximo em Jesus e nos fez filhos no Filho, que certeza teríamos? O
temor da morte, que por vezes basta para nos despertar no meio da noite, não
será um lembrete de que a consistência de nosso ser não tem seu fundamento
em nós mesmos?
Notas:
1. Pio XI, em 1939, pronunciou-se a este
respeito: os ritos chineses, como tais, não são supersticiosos. Os cristãos
podem praticá-los.
2. Humanisme chinois. Spiritualité chrétienne,
prefácio, p. 8, Casterman 1964.
3. A mais conhecida é sua autobiografia: Par delà
l'est et L'ouest, Casterman. 4. Le Livre de la Vie et de la Vertu. Tao Te
King. Trad. e comentários de C. Larré, Desclée de Brouwer, Paris 1977.