Os chineses já foram caracterizados por
missionários e estudiosos - nativos e ocidentais, do passado e do presente -
de várias maneiras diferentes: ou como religiosos e teístas ou como
irreligiosos, ateus e voltados para este mundo. Nos séculos XVII e XVIII
esta divisão de opiniões condicionou as rivalidades surgidas nos círculos
missionários e que se espalharam pelos círculos filosóficos europeus: a
assim chamada Controvérsia dos Ritos com respeito à liceidade dos "Ritos
Chineses" para os cristãos e a assim chamada Controvérsia dos Termos com
respeito à maneira de traduzir em chinês a palavra "Deus". Jesuítas e
dominicanos dividiram-se em lados opostos. Também os filósofos estavam
divididos. Leibniz considerava os chineses religiosos e teístas, mas formou
seu julgamento em parte ao ler o tratado do missionário jesuíta Longobardi,
que tendia a favorecer o lado oposto. Christian Wolff, grande amigo de
Leibniz, elogiava os chineses por sua "moralidade natural", moralidade esta
fundada em conceitos estritamente filosóficos, sem nenhuma referência à
religião e sem nenhuma fé em Deus (1). Um estudioso chinês de tempos mais
recentes (2) afirma, acerca de seu próprio povo, que eles são "a -
religiosos", e sua opinião vem confirmada por vários estudiosos ocidentais.
Joseph Needham, eminente historiador da ciência e ele próprio pessoa
religiosa, acentuou que os chineses não possuem uma fé em Deus igual à do
Ocidente - um Deus Criador e Legislador - fazendo eco assim ao juízo do
filósofo Filmer Northrop (3). Por outro lado, escreveram-se artigos eruditos
sobre a exata noção de fé dos chineses em Deus e continua a pesquisa sobre o
assunto. A arqueologia continua a desenterrar provas em apoio dum primitivo
teísmo religioso. E embora ultrapasse o escopo deste ensaio analisar
teologicamente o sentido de Deus no cristianismo ocidental, antes de
discutir o caso chinês, pressuponho que o termo "Deus" deva referir-se,
tanto no Oriente como no Ocidente, a uma divindade suprema que controla os
assuntos humanos e terrenos.
Em vez de descartar o problema dessas
contradições coexistentes apelando para variadas compreensões e definições
de "religião", proponho-me a discutir a questão do "senso religioso"
peculiar do chinês, cujo caráter singular provocou tão diferentes
apreciações. Examinarei o interesse dos chineses por "este mundo" versus
preocupação de outras pessoas com o "outro mundo", o "ateísmo" chinês versus
"teísmo", e uma suposta moralidade formalista e exterior versus um senso
interiorizado de culpa fundado na religião. Concluirei com uma resposta a
esses problemas, discutindo o senso religioso dos chineses em termos de
transcendência/imanência, aflorando também um problema histórico e político.
1. Aquém versus Além
É esta a categoria mais comum de análise usada
pelos que comparam os chineses e sua mentalidade com outra gente - e outra
gente inclui não apenas os cristãos do Ocidente, mas também e especialmente
os hindus, vizinhos dos chineses além do Himalaia. Max Weber (4) comenta a
tendência e preferência dos chineses pela harmonia com a natureza e a
sociedade. O filósofo Liang Su-ming (5) considera os chineses voltados para
este mundo, em comparação com os hindus, povo que produziu as Escrituras dos
Vedas, a Gita e também o budismo. A mesma coisa afirma o budólogo japonês
Hajime Nakamura (6). Essas apreciações vêm, além disso, apoiadas pela
presença de documentos históricos: de fato, o amor dos chineses por este
mundo e esta vida patenteia-se no fato de eles possuírem registros
históricos detalhados que remontam a vários milênios, ao passo que os hindus
nunca se preocuparam muito em fixar por escrito os grandes eventos do
passado, de modo que os estudiosos continuam a discutir sobre a cronologia
histórica de eventos bem conhecidos da história da Índia, conhecidos de fato
devido a outros materiais que não registros escritos, sejam eles argiletas
ou moedas.
Se aqui entendemos a referência à preocupação com
"este mundo" como um interesse predominante por este mundo e esta vida e
como a afirmação de certos valores geralmente considerados seculares, então
o consenso geral a este respeito parece correto. Mas a preocupação e
afirmação desta vida e deste mundo não precisam excluir crenças acerca do
que pode acontecer após esta vida e este mundo. A veneração dos antepassados
é uma boa indicação deste senso do além, veneração que foi considerada
idolátrica por certos missionários - e idolatria dificilmente pode ser
tachada de indulgência puramente secular. Existe, além disso, a prova de
documentos clássicos e históricos, da arte e de objetos que não podem ser
facilmente descartados como a - religiosos ou "deste mundo". Mesmo a
preocupação caracteristicamente chinesa, na pintura como na arquitetura,
pela "harmonia" com a natureza, que contrasta tão vivamente com a arte e
arquitetura ocidentais - para mencionar apenas as catedrais medievais - não
favorece necessariamente a suposição duma mera "secularidade". Não é
porventura o Templo do Céu em Pequim um lugar óbvio de culto, embora o
estilo do culto, encarnado na própria arquitetura, seja peculiar?
Esse culto, de fato, traz à mente a importante
questão do alegado "ateísmo" chinês. Os textos de oração do culto ao Céu (7)
prestado pelo Imperador manifestam claramente uma crença numa divindade
supramundana, até mesmo numa divindade "pessoal". Como, pois,
justificar-se-ão todas essas alegações?
2. Deus versus Não-Deus
Como o termo religio se refere à relação entre
homem e Deus, a questão da religiosidade há de ser, em última análise, a
questão da crença em Deus. Já nos referimos a certas pessoas, estudiosos e
missionários, que julgaram os chineses ateístas. Recordando que essa
afirmação genérica cobre supostamente milênios de cultura histórica e
bilhões de pessoas, não podemos deixar de ficar desconcertados com a ousadia
da afirmação.
Freqüentemente argumenta-se a esse respeito com
base em apriorismos. Os chineses não podem ser teístas, porque o caráter
nacional e a língua não o permitem. Essa é a linha de argumentação
sustentada por Needham e Northrop. Isto parece insinuar, ao mesmo tempo, que
apenas certos tipos nacionais ou línguas permitem a crença em Deus,
presumivelmente os que derivam dos indo-europeus ou os semitas. Talvez
esteja ainda mais em jogo uma noção bastante estreita de Deus e de crença, o
chamado teísmo clássico, evidenciado, por exemplo, nas Escrituras judaicas e
cristãs.
A resposta a este argumento torna-se clara ao
analisar-se a própria pergunta: deve a crença em Deus ser necessariamente
crença no Deus judeu - cristão e é este necessariamente uma divindade
"pessoal"? Evidentemente, mesmo neste último caso, pode-se mencionar o culto
do Céu na China. E em todo caso o próprio desacordo entre missionários e
estudiosos do passado e do presente basta para lançar suspeitas sobre
respostas "monolíticas". Por que e como caracterizar como "tendo sido sempre
e necessariamente" ateísta um povo e uma civilização com longa história
passada e estendendo-se por meio continente? Não será possível que existam e
tenham existido na China ao mesmo tempo crentes e não - crentes em Deus?!
Não será também possível que tenha predominado uma noção pessoal de Deus em
certos períodos e em certos círculos, ao passo que uma noção mais
"transpessoal" tenha prevalecido em outros períodos e em outros círculos?
A Controvérsia dos Termos que assolou o esforço
missionário dos católicos durante os séculos XVII e XVIII, e em seguida
reacendeu-se novamente entre os missionários protestantes do final do século
XIX e inícios do século XX, é por si só instrutiva. A dificuldade em
traduzir "Deus" ao chinês está no fato de a língua proporcionar muitas
palavras que podem representar "Deus", mas nenhuma delas ser "perfeitamente
adequada". Não se deve isso a uma noção característica de Deus - um Deus de
muitos nomes, por assim dizer, um Deus que não pode ser simplesmente
aprisionado por um único termo?
Um problema que merece menção e estudo é ao mesmo
tempo histórico e político: o monopólio "régio" de Deus na China. Segundo os
ensinamentos de Confúcio, o soberano recebe seu mandato político do céu e
pode perdê-lo, caso governe ou se comporte mal. Costumava-se chamar o
soberano de Filho do Céu. Só ele podia oferecer sacrifícios ao Céu, embora
em favor de seu povo e reino. Os plebeus que tentassem fazê-lo - ou mesmo
remotamente pretendessem alguma relação especial com o Céu - tornavam-se,
portanto, réus de traição. Esse fato histórico explica por que a oração não
era parte tão integrante da vida do povo comum como o era na vida dos sábios
e reis - ao menos pelo que sabemos pelos anais (8).
Explica também por que floresceram "deuses
menores" nos cultos populares: o Céu supremo parecia tão distante para os
humildes e inferiores. Explica também a suspeita política que pairava sobre
os cultos populares, e a supervisão das atividades religiosas. Isso vale não
só do passado distante, mas também do presente. O termo chinês para
"revolução" permanece ko-ming - isto é, remoção do Mandato, um Mandato
provindo do Céu. O linguajar coloquial possui o termo pien-t'ien: mudar o
Céu, mudar o Mandato do Céu. Evidentemente, Céu possui muitos sentidos:
divindade pessoal, força moral, natureza, o céu atmosférico - talvez como
hierofania do divino. Mas a presença simultânea de muitos sentidos não nega
a importância dum sentido primário: o próprio termo vinha originalmente
representado pelo ideograma dum homem com uma grande cabeça: a divindade
suprema e antropomórfica.
3. Vergonha versus Moralidade de Culpa
Afirmou-se também que os chineses não têm um
senso "interiorizado" de moralidade, que eles agem pela aparência, e só pela
aparência, que experimentam apenas vergonha, não culpa. Refiro-me aqui não
apenas às afirmações de antropólogos como Ruth Benedict (9), mas também aos
argumentos sobre a falta de senso do pecado, que missionários mencionaram em
conexão com outra "lacuna lingüística": que não existe um termo próprio
chinês equivalente a "pecado", pois o termo tsui refere-se a crime formal.
Apesar de várias publicações especializadas - como o estudo de W. Eberhard
sobre Culpa e Pecado na China Tradicional, bem como a investigação de H.
Maspero sobre os rituais penitenciais taoístas (10) - esta afirmação deixou
resíduos atrás de si. Eu gostaria de acrescentar outras provas: os clássicos
confucianos, por exemplo, inclusive as preces dos reis sábios do passado que
invocavam clemência para seu povo, tomando sobre si mesmos os "pecados" de
seus súditos. Existe ainda a pouco conhecida passagem, presente ao mesmo
tempo na Doutrina do Meio e no Grande Ensinamento, concernente à vigilância
moral na solidão: o homem nobre e bem educado vigia sobre si mesmo até
quando está só.
Afirmou-se até que o chinês não está propenso a
experimentar conflitos morais, porque há poucos vestígios destes na
literatura. Esse argumento pode ser respondido talvez mais facilmente. É
preciso registrar as experiências interiores para serem reconhecidas?
Durante a década da grande Revolução Cultural Proletária, que começou por
volta de 1964, tampouco aparecem com freqüência motivos românticos na
literatura. Significa isso que os chineses não "amaram" durante esses anos,
ou que simplesmente transformaram o amor num assunto privado? Não poderia a
relativa ausência de conflito na literatura explicar-se também por uma certa
reticência? O silêncio não é uma resposta unívoca.
4. Uma Resposta
Ao examinar certas questões, reconheci a
orientação dos chineses para "este mundo" qualificando-a a meu modo.
Respondi à dicotomia teísmo - ateísmo afirmando a possibilidade de todo um
espectro de crenças sobre Deus ou a divindade. E tentei refutar o argumento
da vergonha versus culpa aduzindo referências de provas clássicas. Agora
desejo tratar do caráter peculiar do próprio senso religioso dos chineses:
essa qualidade muito impalpável que caracteriza a atitude do chinês em
relação a Deus, ao mundo e à responsabilidade moral. Proponho-me fazê-lo em
termos de transcendência e imanência, ou antes, no contexto chinês, em
termos duma transcendência que está presente apesar das orientações para
"este mundo".
Os budistas Mahayana, inclusive os adeptos do
Ch'an (Zen), gostam de falar do "Nirvana" presente no "Samsara" - este
último designando o ciclo de transmigraçóes que afeta todos os seres
sensíveis. Nota-se uma diferença distintiva entre os adeptos do Mahayana e
os da escola Theravada, para os quais o Nirvana, o além, o absoluto,
transcende o Samsara, o domínio da relatividade. A formulação Mahayana
representa, na verdade, uma revolução total no pensamento budista: a
afirmação dos valores deste mundo, sem negar os valores do além. Embora
formulada já no século II d.C. por Nagarjuna, da escola da Doutrina Média ou
Madhyamíka, essa formulação cativou a imaginação dos budistas chineses e
japoneses, e mesmo de confucianos e neoconfucianos, taoístas e neotaoístas.
Segundo esta formulação, acredita-se que o sacro está presente no profano, o
absoluto no relativo e a própria iluminação mística na monotonia das tarefas
quotidianas. Isso possibilitou uma certa libertação "secularista" para os
budistas, tornando a conquista da budidade uma possibilidade universal,
mesmo para os leigos, enquanto reforçava ulteriormente os compromissos
éticos do confucionismo e mitigava o excessivo zelo dos taoístas preocupados
com a busca da imortalidade.
Aos que afirmam e argumentam que a tradição
chinesa não conheceu uma dimensão de "transcendência religiosa" esta fórmula
apresenta uma resposta em linguagem paradoxal. Ilustra a necessidade duma
compreensão "dialética" da China - uma compreensão que vai além das
afirmações e negações, sem negar a utilidade de algumas afirmações e de
algumas negações. A orientação do chinês "para este mundo", a harmonia
chinesa entre homem e natureza, entre homem e mundo, a preferência dos
chineses pelo humano e pelo ético, acusam uma espécie de "imanência divina",
de presença do absoluto no relativo, nas relações humanas, no domínio do
natural. Mas não se exclui o transcendente. Na verdade, este vem realçado,
uma vez que dá sentido ao ordinário e ao natural, ao secular e ao moral. O
senso religioso peculiar dos chineses visa de fato a um harmonioso
equilíbrio entre dois mundos, o visível e o invisível, o temporal e o
supratemporal. Mas orienta a pessoa humana a procurar sua salvação, ou mesmo
sua perfeição, no aqui e agora, particularmente na moralidade das relações
humanas como quer o confucionismo, mas também na beleza da natureza como
querem os sábios taoístas. Possibilitou assim a aceitação do budismo pelo
povo chinês e levou à posterior transformação da religião provinda da Índia.
Não poderiam os cristãos tirar conclusões
interessantes a este respeito? Aludimos aqui à necessidade de promover
teologias "nativas", necessidade ilustrada pelo encontro entre o budismo e
as "religiões" chinesas. Referimo-nos também a desdobramentos internos da
própria teologia cristã, por exemplo a teologia do processo, mas também à
teologia da libertação e à tendência geral de procurar Deus no homem.
Concluímos com esta observação, desejando que outros levem avante o diálogo
intelectual esperançosamente começado.
Notas:
1. Cf. Julia Ching, Confucianism and
Christianity, Kodansha International, 1977, cap. 1.
2. Ch' ien Tuan-sheng, The Government and
Politics of China, Cambridge 1950, p. 15.
3. Cf. Needham, Science and Civilization in
China, Cambridge UP 1956, vol. 2, p. 581; Northrop, The Meeting of East and
West, MacMillan 1966, cap. 9-10.
4. Max W e b e r, The Religion of China,
MacMillan 1964, cap. 6.
5. Liang Su-ming, Tung-hsi wen-hua chi ch'i
clte-hsueh, sem data.
6. Hajime Nakamura, Ways of Thinking of Eastern
Peoples, 1960.
7. James Legge, The Notions of the Chinese
Concerning Gods and Spirits, Hong-Kong 1862, reimpr. 1961, p. 24.
8. Provas encontram-se no Livro da História e no
Livro dos Poemas. Cf. Julia Ching, op. cit., cap. 4.
9. Ruth Benedict, The Chrysanthemum and The
Sword, Riverside Press 1946, cap. 10. A autora fala aqui especialmente dos
japoneses, mas o que ela diz foi muitas vezes estendido aos chineses.
10. O livro de Eberhard (Guilt and Sin in
Traditional China) foi publicado em 1967. O ensaio de Maspero sobre o
taoísmo está incluído em sua obra póstuma Les Religions Chinoises, vol. 1,
Paris 1967.