Não podemos acabar este capítulo sem algumas
referências às idéias cosmológicas contidas no I Ching, um livro que, talvez
mais do que outro dos Clássicos Confucionistas, havia de exercer uma
profunda influência no pensamento subseqüente confucionista a respeito da
origem da natureza do homem e do seu lugar e categoria no universo. Embora
não completado na sua atual forma até à dinastia Han, o I Ching contém
material reunido de tempos muito primitivos. Muitos escolares chineses
aceitam que era bem conhecido de Confúcio e que foi estudado por ele. Já no
período Ch’un Ch’iu (c. 720-479 antes de Cristo), de acordo com o Kuo Yu
(22) e o Tso Chuan, (23) os oito trigramas se julgavam símbolos de céu e
terra, montanhas e pântanos, vento, fogo, água e trovão. As cosmologias do I
Ching baseavam as suas especulações respeitantes à origem de todas as coisas
do universo na analogia da concepção dos seres humanos. Uma unidade
primitiva manifestava-se em duas forças complementares, nomeadamente a yin e
a yang. Elas, pela sua constante interacão, produziam todas as coisas.
Conforme Fung Yu-lan escreveu (24):
“As maiores coisas do universo são o céu e a
terra. No céu, os objetos mais notáveis são o sol e a lua, o vento e o
trovão. Na terra, os objetos mais notáveis são as montanhas e os pântanos.
De maior uso para os homens são o fogo e a água. Julgava-se que estes
objetos constituíam o universo. Daí os objetos simbolizados nos trigramas
serem os constituintes básicos do universo”.
O caráter I no título de I Ching tem o
significado primário de transformação ou mudança. Mas é mudança que se
baseia em constância e em regularidade, a própria essência do princípio Tau
eterno e invariável. Este Tau, pela simples e espontânea ação recíproca de
Yin e de Yang, produz todas as mudanças e transformações do universo. Tudo
no universo resulta dessa transformação, e está ainda em processo de
transformação. Por um estudo dos oito trigramas e dos sessenta e quatro
hexagramas que derivavam deles, os homens podem atingir um completo
entendimento dos fenômenos que eles significam, as relações mútuas sob as
quais subsistem, e as normas de transformação e mudança a que
inevitavelmente obedecem. O homem tem assim no I Ching um esquema donde pode
ler todo o universo. Mas o homem pode fazer mais. Pode aprender a modelar a
sua própria vida e conduta sobre os princípios condutores revelados nesses
símbolos de modo a colocar-se em perfeita harmonia com o processo cósmico.
Assim, um trabalho que começou como um tratado sobre adivinhação da dinastia
Chou, no fim da dinastia Chou chegou a ter grande significado ético e
metafísico.
Notamos já uma tendência entre escolares do
período imediatamente anterior à nossa era para procurar uma síntese entre o
pensamento tauísta e confucionista. Esta tendência é particularmente
evidente no Terceiro Apêndice do 1 Ching. O autor dessa obra, um produto da
dinastia Han, em linha com a tendência naturalista do tauísmo, concebia o
céu como uma força cósmica. Mas enquanto o tauísmo, no seu esforço para
seguir a espontaneidade da natureza, desprezava a sabedoria humana, a
moralidade, a arte e a cultura, o 1 Ching no seu Terceiro Apêndice
identifica o “Caminho” (Tau) do homem com o Caminho do céu, e atribui o
desenvolvimento da sociedade, da moralidade, da civilização, ao fato de que
os reis sábios se modelavam pelo Caminho do céu estudando as representações
simbólicas de tudo quanto o céu produz. Assim, de um modo verdadeiramente
confucionista (25), o Terceiro Apêndice, ao descrever o homem ideal, diz
dele:
“O grande homem, nos seus atributos, está em
harmonia com o céu e a terra; no seu brilho, com o Sol e a Lua; no seu
procedimento ordenado, com as quatro estações; e na sua relação com as boas
e más decisões, em harmonia com os agentes espirituais. Ele pode anteceder o
céu e o céu não agirá em oposição a ele; pode seguir o céu, mas só agirá
como o céu quando o tempo chegar. Se o céu não agir em oposição a ele, muito
menos o homem o fará, e muito menos os seres espirituais” (26).
Está aqui apresentada uma “maneira de vida” que,
na sua ênfase principal, difere fundamentalmente e caracteristicamente dos
sistemas religiosos que apareceram na Índia e no mundo semítico. O
pensamento indígena chinês não era indiferente às imperfeições radicais que
pertenciam tanto aos indivíduos como à sociedade, mas concebia a “salvação”
como o alcance do estado de “sábio perfeito”. Era um estado possível a todos
os homens, através de uma compreensão esclarecida da “natureza das coisas” e
na base dessa compreensão, uma harmonia da sua própria natureza com a do
cosmos. Não havia necessidade de se requerer um Deus pessoal. Toda a
natureza era “cheia de espírito”, e o espiritual agia e manifestava-se nas
operações da natureza. Não havia necessidade de um Salvador ou de conversão
radical, porque a raiz da bondade estava em todos os homens e só precisava
de desenvolvimento “natural”. Apesar da ênfase sobre o culto dos
antepassados, não havia interesse, ou havia pouco, pelo após vida, visto que
a “mudança” era inerente à natureza de todas as coisas, mesmo no que fica
para além do nosso alcance. O que verdadeiramente importava era que as
transformações que tomassem lugar dentro de nós próprios, e pelas quais
fôssemos moralmente responsáveis, estivessem em harmonia perfeita com a
espontaneidade do Tau.
Que tal filosofia apelasse para os escolares
altamente intelectuais e agnósticos compreende-se. Mas falhava em satisfazer
as profundas necessidades religiosas da multidão dos homens e mulheres
comuns que, conforme veremos nos capítulos seguintes, acharam respostas
satisfatórias a essas necessidades no tauísmo religioso e no budismo. Ambas
estas “crenças” foram importantes na China durante os primeiros séculos da
nossa era.
Notas
22. The Kuo Yü, ‘Chin Yü’, 4:9.
23. Ver The Ch’un Ch’iu, Tso Chuan nos anos
672-537 AC.
24. Fung Yu-lan, A History of Chinese Philosophy,
vol. 1, Pequim, 1937, p. 383.
25. Ver o Chung Yung, 31 : 4.
26. I Ching, terceiro apêndice, Secção 1: 34.