O que se conhece no Ocidente como confucionismo
tem raízes nos tempos pré-confucionistas, nos ensinamentos da Ju, a classe
escolar, cuja origem tem sido calorosamente debatida por eruditos chineses
nos últimos anos (1). Esses Ju parece terem sido peritos na realização e
interpretação dos ritos religiosos e eram os possuidores e transmissores da
cultura tradicional. Confúcio reconheceu-se em dívida para com esses
professores do passado. “Eu transmito mas não crio” disse (2). O Ju Chiao ou
confucionismo exerceu um papel dominante no desenvolvimento da civilização
chinesa durante mais de dois milênios.
Vários séculos após a sua morte, Confúcio chegou
a ser reconhecido na China como “o maior sábio da China”. Por vezes,
eram-lhe concedidos títulos extravagantes tais como “rei”, “sábio perfeito”,
“co-igual com o céu e a terra”. Alguns escolares do período Han ocidental
(202 antes de Cristo - AD 9) consideravam-no virtualmente uma divindade.
Foram erigidos templos em sua honra, e mesmo nos primeiros anos do século
atual foi feita uma tentativa séria, embora abortada, para tornar o
confucionismo a religião do estado (3). No entanto, Confúcio não fundou uma
religião, e muitos estudantes distintos da cultura chinesa, tanto no Oriente
como no Ocidente, têm-se recusado a chamar ao confucionismo uma religião.
Confúcio, defendem eles, foi primeiramente um grande professor ético,
interessado principalmente em problemas sociais e políticos. Põe-se contudo
a questão: se os seus ensinamentos éticos e político-sociais se baseavam num
humanismo racionalista, ou numa profunda fé religiosa que se manifestava na
devota aceitação das práticas religiosas tradicionais e na humilde confiança
num supremo e divino poder. Ê a resposta a esta pergunta que vai determinar
se sim ou não o confucionismo pode ser enfileirado entre os grandes sistemas
religiosos do mundo.
Tem-se discutido, e não sem razão, que o
confucionismo não possui muitas das importantes características que se
encontram na maioria das grandes religiões históricas da humanidade. Nunca
possuiu uma organização distintamente religiosa. Nunca desenvolveu um clero
especializado, sendo as funções sacerdotais realizadas pelo chefe do estado
ou do clã, ou entregues a funcionários escolares. Não possuía afirmações de
credo nem doutrinas autoritárias. Olhava com desprezo o monasticismo e o
ascetismo. As suas “escrituras”, embora respeitadas, nunca foram julgadas
“revelações” como a Bíblia, o Alcorão ou os Vedas. Nunca teve ritos de
iniciação numa comunidade religiosa. Não tem uma doutrina distinta do
após-vida e falta-lhe uma escatologia. Contudo, se religião se define, de
modo geral, como o reconhecimento do homem, a sua crença e a sua atitude
para com um poder ou poderes espirituais mais altos, se a religião diz
respeito ao significado fundamental da vida e do destino humano, então o
confucionismo devia ser classificado como religião e não simplesmente como
uma filosofia ético- política. Através de toda a sua história, o
confucionismo tem manifestado um profundo sentido da dependência do homem de
uma divindade suprema. Tem encorajado um sentido de íntima relação entre um
mundo espiritual transcendente e o mundo dos homens. Tem dado expressão a um
sentido de dependência de seres espirituais em rituais complicados e orações
fervorosas (4).
Antes de discutirmos a importância de Confúcio
relativamente à religião na China, é necessário perguntar quais são as
fontes do nosso conhecimento da sua vida e ensinamentos, e até onde elas são
seguras. A famosa biografia de Confúcio, de Ssu- ma Ch’ien (5) não foi
escrita senão 350 anos depois da sua morte. A maioria das obras atribuídas a
Confúcio sabe-se agora que obtiveram substancialmente a sua atual forma na
dinastia Han. Anedotas a seu respeito, referências a ele e citações dos seus
ensinamentos encontram-se em numerosas publicações confucionistas, tauístas
e moístas de tempos posteriores (6). Todo este material precisa de ser
tratado com a maior cautela porque é, geralmente, de natureza polêmica ou
apologética. Há um acordo substancial entre escolares de que a nossa
primeira e mais autêntica fonte de Confúcio e dos seus ensinamentos é o
livro chamado “Os Analectos de Confúcio” (7), mas mesmo os “Analectos” não
vieram à luz senão duas gerações depois da morte de Confúcio, numa época
cerca do começo do século IV antes de Cristo. Uma segunda geração de
discípulos confucionistas reuniram as notas espalhadas e as memórias
daqueles que tinham sido os sequazes imediatos do sábio e arranjaram-nas em
vinte pequenos capítulos. Uma análise crítica desses vinte capítulos revela
que, como prova histórica da vida e dos ensinamentos de Confúcio, são de
valor desigual, e só do livro terceiro ao nono há algum arranjo ordenado e
consistência lógica. Os “Analectos” não contêm a ipsissima verba de
Confúcio, mas só a substância dos seus ensinamentos e uma representação
muito viva do homem e do seu caráter.
Neste capitulo esperamos mostrar, principalmente
por meio de referência aos “Analectos”, que os ensinamentos sublimes de
Confúcio se fundavam em religião: num profundo respeito pelas práticas do
culto através das quais os manes dos antepassados e de outros poderes
espirituais eram adorados e honrados, e também num conceito dominante dos
“Caminhos do Céu” onde o céu (T’ien) se concebia como uma divindade suprema
cujos “caminhos” regulavam a vida e as relações dos homens.
Supõe-se que Confúcio viveu desde 551 a 479 antes
de Cristo. O que podemos recolher dos “Analectos” relativamente aos seus
antecedentes e à sua história pessoal é incompleto (8). Ele cresceu em
comparativa pobreza no pequeno mas culto estado de Lu (agora no moderno
Shantung) onde viveu a maior parte da sua vida e conseguiu um pouco de
sucesso político. No seu tempo, a antiga forma feudalista da sociedade
estava a ruir, mas existiam grandes distinções entre a nobreza e a massa do
povo, entre a classe governante e os governados, entre as grandes famílias
hereditárias e os camponeses. No entanto, já as margens dessas distinções se
tornavam menos agudas, porque aventureiros comparativamente desconhecidos e
oportunistas militares estavam a aparecer e a arrancar o poder dos
governantes dissolutos e incompetentes. As velhas crenças religiosas e os
padrões éticos estavam a sucumbir em face das pressões sociais, econômicas e
políticas. No entanto, pelo menos os rituais formais e as cerimônias da
antiga religião da China continuavam a representar um papel importante na
vida dos contemporâneos de Confúcio. Conforme tem ocorrido em muitas outras
velhas religiões, no decurso do seu desenvolvimento, houve uma transição do
ritual para o pensamento ético e nessa transição Confúcio representou uma
parte crucial.
Embora relativamente esquecido no seu tempo, e
com uma influência muito limitada, Confúcio destacava-se, acima de tudo,
como um grande professor ético. Parece que ele pouco se interessou por
problemas metafísicos tais como a natureza e origem do universo ou a
natureza e o destino do homem, o que não pode ser usado como argumento
contra a crença de Confúcio num ser divino supremo. Quando os “Analectos”
contam que Confúcio não falou de “prodígios, feitos de força, desordens e
espíritos” (9) querem dizer simplesmente que ele se opôs às crenças e
práticas supersticiosas do seu tempo. Quando o seu discípulo Tzu Kung disse
que não era possível saber o que Confúcio realmente pensava acerca dos
Caminhos do Céu (10), estava a indicar que, embora o seu mestre aceitasse os
Caminhos do Céu como um dogma da sua fé, mostrava uma certa reticência em
permitir aos seus, pessoalmente, defender crenças que se tornassem assunto
de discussão e argumento geral. Em raras ocasiões ele discutiu este assunto
e outros semelhantes, preferindo que os homens deduzissem a sua religião
pelo seu modo de viver:
O Mestre disse: “Não desejo falar”. Tzu Hsia
disse: “Se o mestre não deseja falar, como podem os vossos discípulos
registrar as vossas palavras?”, O mestre respondeu: “Como é que o Céu fala?
As quatro estações vêm e vão, centenas de coisas nascem. Como é que o Céu
fala?”
(Ana. 17:9)
Sem dúvida que o principal interesse de Confúcio
dizia respeito ao homem quando ele vive nesta vida, e aos princípios
fundamentais que estão na raiz das relações onde assentam a estabilidade, a
paz e a prosperidade da sociedade, da família e do indivíduo. Ele estava
interessado em enunciar a base da integração íntima e da harmonia da
personalidade que resulta em boa vida e boa conduta. No entanto, essa base
ele encontrou-a na obediência e na conformidade com os Meios do Céu.
Sugerir, como muitos escolares fazem, que Confúcio achou uma solução
satisfatória no puro humanismo, e que as suas éticas não assentam finalmente
em profundo conhecimento religioso e fé pessoal em T’ien, é descontar muitos
dos fecundos ditados atribuídos a Confúcio nos “Analectos”.
Desapontado na carreira política (11), foi como
educador que Confúcio achou o seu lugar, treinando jovens que mostravam
promessas de serviço nas cortes dos príncipes feudais. Como professor,
revelou gênio. Foi talvez um dos primeiros na China a estabelecer a sua
escola particular, atraindo estudantes somente pela força da sua
personalidade e pela qualidade dos seus ensinos, e ganhando a lealdade e a
afeição deles. Ele adorava a cultura, acreditando que estava apenas a
selecionar e a passar a outros a antiga sabedoria, e nunca reivindicando
possuir uma mensagem original;
O mestre disse: “Numa aldeia de dez casas podeis
ter a certeza de encontrar alguém tão leal e verdadeiro nas suas palavras
como eu. Mas duvido que encontreis alguém com tanto amor à cultura”.
(Ana. 5 :27)
Nunca me cansei de aprender nem de ensinar aos
outros o que aprendi.
(7 :1)
Eu, pela minha parte, não sou desses que possuem
conhecimentos inatos. Sou simplesmente alguém que ama o passado e que se
esforça por o investigar.
(7 : 19)
A religião que Confúcio herdou aceitava a crença
numa divindade suprema, T’ien ou Shang Ti, que governava o cosmos e todos os
outros seres espirituais e que se interessava pelo bem dos homens. Os sinais
do interesse de T’ien estavam lá para toda a gente ver, mas em particular
T’ien revelava a sua vontade por meio das suas nomeações, decretos,
comissões ou mandatos. Confúcio mostra repetidas vezes esse sentido da
delegação divina.
O mestre disse: “O Céu iniciou o poder (Tê) que
há em mim. Que tenho eu a temer de um tal como Huan T’ui?”
(Ana, 7:22)
O mestre disse: “Se é da vontade do céu que o
caminho prevaleça, então prevalecerá. Mas se é da vontade do céu que o
caminho acabe, então deve acabar. O que pode Kung- po Liao fazer contra a
vontade do Céu?”
(14 : 38)
O mestre disse: “A verdade é que ninguém me
conhece... não acuso o céu nem culpo os homens. Mas os estudos dos homens
aqui em baixo sentem-se nas alturas, e talvez, ao fim, eu seja conhecido;
não aqui, mas no céu”.
(14 : 37)
Quando o mestre foi apanhado numa cidade em
K’uang, ele disse: “Quando o Rei Wên morreu, significou isso que a cultura
(Wên) deixou de existir? Se o céu tivesse realmente pretendido que a cultura
como a dele desaparecesse, um mortal de agora jamais se poderia ligar a ela
como eu o tenho feito. E se o céu não pretende destruir tal cultura, que
tenho ou a temer do povo de K’uang?”
(9:5)
Só quando tinha cinqüenta anos de idade é que
Confúcio pôde dizer que entendia o decreto do céu (Ana: 2 : 4). Um homem não
podia ser um verdadeiro homem “nobre” a não ser que conhecesse a nomeação do
céu (Ana. 20: 3). A primeira coisa a que um caráter nobre tem respeito é ao
decreto do céu, e aquele que conhece o decreto do céu e não o reverencia é
insolente (Ana. 16 : 8). A crença de que a vida e o destino são ordenados
pelo céu resultaram numa tendência para o fatalismo, um fatalismo que se
revela nos escritos do período Ch’un Ch’iu e em discípulos posteriores a
Confúcio que Mo- tzu castigou. Mas as idéias de Confúcio não eram
fatalistas. A ordem do céu era que o homem seguisse o caminho que o próprio
céu tinha estabelecido, mas Confúcio acreditava que o homem podia escolher,
seguir ou rejeitar a ordem do céu. Ele nunca duvidou de que o homem pudesse,
no exercício da sua natureza concedida pelo céu, seguir o Caminho do céu.
Isso é o que os sábios da antiguidade os Shêng Jên, tinham feito, e por
causa disso eram exemplos e modelos para os homens das gerações posteriores.
O esforço constante para seguir o Caminho do Céu fora a marca do chun tzu,
ou homem nobre. Assim, em Confúcio havia um forte sentido de
responsabilidade moral pessoal e a crença de que, em grande parte, o destino
das pessoas está nas suas próprias mãos.
Procurando conformar-se com o Caminho do Céu, o
homem de coração nobre não se conforma simplesmente com os padrões e as leis
humanas, inventados para o regulamento da sociedade, mas está a regular a
sua vida de acordo com princípios que são ordenados por T’ien e que formam
os princípios reguladores de uma ordem cósmica. Assim é que a ética de
Confúcio tem raiz na crença religiosa. O que realmente interessa é que um
homem seja conhecido pelo céu (Ana. 14: 37), e que “O céu dê origem ao poder
que há nele” (Ana. 7 : 22).
Do seu interesse dominante pela ética, a sua
relutância em discutir o sobrenatural ou a vida depois da morte, e a
infrequência das suas referências ao céu e ao Caminho do Céu, tem-se
sugerido que Confúcio principiasse por divorciar a ética da religião (12), e
que os seus ensinamentos são puramente humanistas sem qualquer referência
sobrenatural. Contudo, quando examinamos os conceitos básicos que estão
debaixo de todos os seus ensinamentos éticos (13), principalmente, o Caminho
(Tau), a Virtude (Tê), o Amor (Jên), a Retidão (1), e o Decoro (Li), achamos
que essas “virtudes” que caracterizam o “homem perfeito” através de cuja
influência e exemplo a sociedade avançará para o ideal, são “virtudes” por
serem as qualidades que Confúcio atribui ao princípio governante do
universo. A ordem cósmica é o que é por causa delas. Elas pertencem à
própria natureza de T’ien. O homem torna-se o que deve ser modelando-se por
T’ien. Os ensinamentos de Confúcio são penetrados por uma profunda
reverência e crença em T’ien. Ele concebia T’ien como o autor dos seus
poderes; achava conforto em saber que pelo menos T’ien o compreendia embora
os homens não; e chamava T’ien para o justificar quando se via sujeito a
calúnia. Parece nunca ter tido dúvidas de que T’ien era reto, e benigno, e é
significativo o fato de tauístas de tempos posteriores, no seu ataque ao
confucionismo, se oporem a Confúcio nesse mesmo ponto insistindo que “O Céu
não é benigno (Jên), mas trata todas as coisas como cães ociosos” (14).
Se há algum conceito que devamos considerar
central nos ensinamentos de Confúcio é o conceito de “O Caminho” (Tau). O
caráter Tau significava originalmente uma estrada ou um carreiro, e neste
sentido é algumas vezes usado nos “Analectos” (9: 11). Confúcio, contudo, dá
um extensivo significado a esse importante caráter, e é notório que seja
usado mais vezes nos “Analectos” do que em toda a literatura existente
anteriormente. Uma estrada é um caminho que um homem percorre a fim de
alcançar o seu objetivo ou destino, e assim torna-se o caminho que ele deve
percorrer a fim de alcançar a meta do céu. Para Confúcio, “O Caminho” é não
só um conceito puramente humanista, como alguns escolares chineses têm
discutido, isto é, “O Caminho do Homem”, o Caminho traçado por sábios
anteriores, mas é fundamentalmente “O Caminho do Céu” e conseqüentemente o
caminho que o céu ordena que o homem pise. Não há aqui a idéia do princípio
eterno, sem nome, sem forma, auto-existente, que jaz por trás de todos os
fenômenos, o conceito metafísico dos tauístas. O Tau de Confúcio é o Caminho
que os homens bons e sábios seguem e sempre têm seguido quando procuram
conformar as suas vidas pela vontade do céu. É portanto o caminho que todos
os homens de caráter nobre deviam procurar através da vida. O conceito do
Caminho corre como um fio através dos “Analectos”: é um Caminho
caracterizado por amor, retidão, decoro e sabedoria. É o Caminho de
reciprocidade (shu) e lealdade (Chung) em todas as relações humanas. É
seguido em sinceridade perfeita (ch’êng) e conduz à harmonia (ho).
Se é da vontade do céu que o Caminho prevaleça,
então o Caminho prevalecerá.
(Ana. 14: 38)
Põe o teu coração no Caminho, mantém-te por meio
desse poder, apóia-te na bondade, procura distração nas artes.
(7 : 6)
De manhã, escuta o Caminho; à noite, morre
contente.
(4 : 8)
O que eu chamo um grande ministro é o que só
serve o seu príncipe enquanto o pode fazer sem infração do Caminho, e logo
que isso seja impossível, demite-se.
(11 :23)
Riqueza e categoria é o que todos desejam, mas se
isso puder ser obtido somente para prejuízo do Caminho que a pessoa
professa, deve desistir delas... nunca nem por um momento um homem deixe o
Caminho da bondade.
(4 : 5)
Confúcio não tinha dúvidas de que um homem podia,
se o desejasse, seguir o Caminho e atingir a perfeição humana. Não há no seu
pensamento nenhuma idéia de uma perversão radical da vontade que só podia
ser remediada pela graça de um deus salvador, nem de culpa tão grande que
nenhuma emenda pessoal pudesse apagar a sua mancha. Ele acreditava que o
homem era bom por natureza e que o próprio T’ien lhe tinha dado essa
natureza. O pecado era o falho do homem em atingir o equilíbrio harmonioso
por meio do qual podia funcionar como um homem perfeito, ou melhor, era o
excesso desordenado do uso das faculdades e poderes que precisavam ser
mantidos em ordem e disciplinados. Confúcio não ensinava, como alguns Têm
suposto, que um homem deve só contar consigo para atingir a perfeição. T’ien
estava constantemente diante dos seus olhos e por T’ien ele podia
modelar-se. O caminho de T’ien estava descrito para o homem o descobrir. Tal
descoberta tinha já sido feita por velhos sábios que nos seus dias
conseguiram a perfeição. Eles haviam deixado o exemplo e o preceito para que
a posteridade os seguisse.
Embora esses sábios, ou Shêng Jên, fossem o ideal
supremo do homem perfeito, no tempo de Confúcio pensava-se que eles tinham
atingido a divindade e Confúcio nunca reivindicou ser da sua classe. No
entanto defendia uma idéia prática de perfeição diante dos homens dentro do
conceito do chün- tzu ou homem magnífico. Originalmente, os chün- tzu eram
os que tinham nascido dentro da nobreza hereditária, mas, de acordo com
Confúcio, ninguém podia tornar-se um chün- tzu por auto-cultura e
disciplina. O chün- tzu era o homem de caráter nobre ou magnífico, o
verdadeiro cavalheiro. Ao ensinar esse ideal do chün- tzu, Confúcio
desenvolveu os seus ensinamentos acerca das virtudes cardeais - amor,
retidão, justiça e sabedoria.
Confúcio tem sido por vezes acusado de se deixar
arrastar pela admiração dos grandes sábios da antiguidade e de ser demasiado
pontual a respeito das leis estreitas da moralidade convencional, do
cerimonial e da etiqueta. No entanto, repetidas vezes, ele deu provas de
alta coragem moral e de vontade de ignorar a convenção, se ela chocasse com
os bons sentimentos e o senso comum. A razão disto era a primazia que ele
dava à consciência e o ênfase que punha na qualidade interior do jên, ou a
sugestão do coração como fonte da verdadeira conduta, na idéia mais do que
no ato exterior. Ele sabia que, entre as classes governantes, com quem tinha
de tratar, o maior perigo era a liberdade que a riqueza, a herança e a alta
categoria lhes davam, uma liberdade que muito facilmente se mudava em
excesso e indulgência própria. Os príncipes poderosos eram a própria lei. Só
duas coisas os podiam refrear desses excessos que levariam à desintegração
da sociedade, e ambas essas coisas receberam grande ênfase nos ensinamentos
de Confúcio: li, que compreendia um corpo de costumes, regras de justiça e
de decoro para governar todas as relações familiares e sociais; e jên, essa
qualidade interior do coração que dava serenidade e equilíbrio, que
integrava a personalidade íntima, resultando na auto-disciplina do homem
digno.
Ao anunciar o seu ideal quanto a atingir a Vida
Perfeita em completo acordo com a vontade do céu, Confúcio não deixou lugar
para o ascetismo e para a auto-mortificação, nem acreditava que era preciso,
para a perfeição pessoal, abandonar a sociedade e tornar-se eremita ou
recluso;
Uma pessoa não pode andar em rebanho com pássaros
e bestas. Se eu não sou um homem entre outros homens, então o que sou? Se o
Caminho prevalece, debaixo do céu, não devo tentar alterar as coisas.
(Ana. 18 : 6)
Um exame da atitude de Confúcio e dos seus
ensinamentos acerca de li e jên revela a importância fundamental da religião
para Confúcio, tanto no seu aspecto exterior de ritos e cerimônias como no
seu aspecto interior de compromisso para com a vontade do céu.
Embora o caráter li tenha sido diferentemente
traduzido por “justiça, ritos, cerimônias” (‘a) e o li do tempo de Confúcio
fossem os costumes não escritos que regulavam todas as relações da sociedade
e da família, um exame da derivação do caráter revela que originalmente
estava intimamente ligado ao culto sacrifical pelo qual os manes dos
antepassados e os deuses e os espíritos eram adorados e honrados. Os livros
de ritos que chegaram até nós, o Li Chi, o I Li e o Chou Li, não atingiram a
sua forma atual senão muito tempo depois de Confúcio (16), e não há dúvida
de que, com o tempo, ritos mais simples de uma época anterior foram muito
complicados e adaptados a circunstâncias mutáveis. Contudo, esses livros
podem merecer crédito, em geral, para nos darem uma verdadeira idéia dos
ritos e cerimônias que eram praticados pelos contemporâneos de Confúcio.
Muitos desses ritos eram de natureza religiosa, especialmente os que
pertenciam aos templos ancestrais, aos altares de terra, ao culto dos mortos
e aos sacrifícios que se faziam periodicamente ao céu, à terra e à hoste de
seres espirituais. Através de toda a história chinesa, desde os primeiros
tempos, a realização regular e correta dos ritos tem sido considerada
essencial para a paz e a prosperidade da terra e do seu povo. Que o próprio
Confúcio ligava importância suprema à representação do li é provado nos
“Analectos”. De acordo com os seus ensinamentos, o li providenciava guia
para os vivos, atuava como uma coibição na tendência do homem para o mal, e
fornecia uma base obrigatória à sociedade;
Yen Hui fez perguntas sobre a Bondade (Jên). O
mestre disse: “Aquele que se pode submeter ao ritual (li) é Bom. Se (um
governante) pudesse um dia submeter-se ele próprio ao ritual, toda a gente
debaixo do céu corresponderia à sua Bondade. Porque a Bondade é algo que
deve ter a sua fonte no próprio governante; não pode ser obtido de outros”.
Yen Hui disse: “Peço itens mais pormenorizados disso (a submissão ao
ritual)”. O mestre respondeu: “Não olhar para nada que desobedeça ao ritual,
não escutar nada que desobedeça ao ritual, não falar em nada que desobedeça
ao ritual, nunca mexer mão nem pé em desobediência ao ritual”.
(Ana. 12 : 1-2)
Nesta citação, o li, que incluiu todo o ritual
religioso e cerimonial, é declarado ser aquilo por meio de que a bondade
(jên) do homem encontra inteira expressão. Ao mesmo tempo a devida
observância do li conduz inevitavelmente a um perfeito domínio sobre toda a
auto-expressão;
A cortesia não limitada pelas prescrições do
ritual torna-se cansativa, a cautela torna-se timidez, a ousadia torna-se
turbulência, a inflexibilidade torna-se dureza.
(Ana. 8:2)
Enquanto os pais estão vivos, serve-os de acordo
com li. Quando eles morreram, enterra-os de acordo com li e sacrifica a eles
de acordo com li.
(2:5)
Para Confúcio, os sacrifícios no templo ancestral
eram tão importantes que, se realizados impropriamente, ele não estava
preparado para continuar a ficar depois da libação ter sido derramada (Ana.
3:10). Acreditava que, se alguém compreendesse perfeitamente o significado
dos ritos, estaria pronto para governar toda a terra (Ana. 3: 11). Os
príncipes não deviam pensar que era suficiente realizar sacrifícios em seu
nome na sua ausência. Os verdadeiros sacrifícios não só exigiam a presença
da pessoa mas também um reconhecimento sincero de que os antepassados ou
espíritos a quem os sacrifícios eram feitos estavam também presentes (Ana.
3:12). Quando o discípulo Tzu- Kung desejou dispensar o carneiro que estava
presente no templo no primeiro dia da lua nova, Confúcio disse: “Tu dás de
má vontade o carneiro, mas eu interesso-me pelo ritual” (Ana. 3 : 17). Em
todas as representações do ritual a sinceridade e a reverência eram um sine
qua non;
Nos ritos do luto, a dor é mais importante do que
a atenção ao pormenor.
(Ana. 3 : 4)
Ritual representado sem reverência e ritos de
luto realizados sem dor, como posso contemplar tais coisas!
(3:26)
O mestre disse: “Ritual! ritual! Não é mais do
que a oferta de jade e seda? Música! música! Não é mais do que sinos e
tambores?”
(17: 11)
O mestre disse: “Um homem não pode possuir
caráter verdadeiramente nobre se não conhecer os mandamentos do céu. Ele
nunca será capaz de ocupar o seu lugar se não conhecer o li ”.
(20 : 3)
Se a observância do li era a expressão exterior
da atitude religiosa de Confúcio, a prática do jên era o seu dinamismo
interior. O caráter jên tem sido traduzido variadamente por “amor, bondade,
benevolência, humanidade, fraternidade”, e nos “Analectos” é usado em dois
sentidos; primeiro, como uma das virtudes, se na verdade a maior, no sentido
de Amor; e segundo, como um agregado de todas as virtudes, no sentido de
bondade perfeita. Era a qualidade que Confúcio apreciava acima de todas as
outras, e no entanto era demasiado humilde para pretender tê-la atingido
(Ana. 7: 33). Tratava-se de uma graça sobrenatural possuída somente por Tien
e os divinos sábios da antiguidade. Contudo, em certa medida, todos os
homens a podiam procurara e desde que eles vivessem por meio dela atingiriam
a estatura completa do homem perfeito e cumpririam o seu destino como seres
humanos;
É o jên que torna os arredores belos. Como pode
um homem ser chamado sábio se não se estabelece em bons arredores (jên)?
(Ana. 4 : 1)
O mestre disse: “Um homem sem jên não pode
habitar muito tempo na adversidade sem gozar muito tempo a felicidade. Os
que praticam jên descansam no jên, e os sábios cobiçam- no”.
(4 : 2)
Aquele que se submeter ao jên não praticará o
mal.
(4 : 4)
Nunca vi ninguém que realmente amasse jên nem
odiasse o que não era jên. Aquele que amasse jên não estimaria nada acima
disso; e quem odiasse o que não fosse jên praticaria jên e não permitiria
que cousa nenhuma que não fosse jên o afetasse. Há alguém que durante um
único dia seja capaz de empregar toda a sua força por jên? Nunca vi ninguém
com força insuficiente. Pode haver uma pessoa assim, mas nunca a vi.
(4 : 6)
O mestre disse: “Está jên distante? Eu desejo jên
e jên fica- me à mão”.
(7 : 29)
Jên é a auto-negação e o regresso ao decoro (li).
Pela auto- negação e o regresso ao decoro, todo o mundo voltaria para jên.
(12 : 1)
Fan Chih perguntou o significado de jên. O mestre
disse: “Ama os homens”.
(12 - 21)
Pode haver um homem nobre (chün- tzu) que
falhasse em jên mas nunca houve um homem vil que possuísse jên.
(14 - 7)
O homem que possui jên não procurará preservar a
sua vida à custa de jên. Há os que, através da morte, levam o seu jên à
perfeição.
(15 - 8)
Jên é de mais importância para as pessoas do que
o fogo e a água. Tenho visto homens morrer por caminharem através da água ou
do fogo, mas nunca vi um homem morrer por caminhar através de jên.
(15 : 34)
Embora esses elevados sentimentos por meio dos
quais Confúcio falava de jên possam naturalmente caracterizar um humanismo
puramente ético e não religioso, quando tomamos os ensinamentos de Confúcio
como um todo, em a sua ênfase sobre a vontade do céu (Tien Míng), sobre o
Caminho (Tau) e sobre o Amor (Jên) como o agregado de todas as virtudes,
verificamos que Confúcio interpreta esses conceitos como se eles
pertencessem à natureza do poder espiritual que está por trás e acima da
ordem cósmica. Ming é imposto aos homens a comando do céu; Tau é o Caminho
que o céu manda os homens seguir; Jên é a meta ideal do empenho de todos os
homens porque a sua natureza nascida no céu diz-lhe que o céu é jên.
Os ensinamentos de Confúcio são primariamente uma
filosofia ética que, posta em prática, conduzirá ao ideal de um homem
perfeito, o chun- tzu ou shêng jên, e assim à meta final da harmonia
universal. Mas o original poder motor para a transformação e progresso da
vida humana jaz no princípio diretivo da lei do céu. Daí., Confúcio, ao
relatar a sua história pessoal, dizer: “Aos cinqüenta anos eu soube o que
eram as ordens do céu” (Ana. 2 : 4). Tendo alcançado esse estado em que ele
era sensível à vontade do céu para a direção da sua própria vida, pôde
seguir rumo à meta da perfeição. “Aos sessenta anos o meu ouvido era dócil
(aos mandamentos do céu). Aos setenta, pude seguir os ditados do meu próprio
coração, pois o que eu desejava já não excedia os limites do que era certo”.
(Ana: 2 : 4). Embora a bondade fosse o seu principal alvo, recusou-se a
defender diante dos homens a esperança de recompensa pela virtude, quer
nesta vida quer na outra. Quanto a esta vida, ele sabia, pela sua própria e
amarga experiência, que o seguimento da virtude podia levar a sofrimentos e
à pobreza. Quanto à vida futura, não parecia estar de todo interessado.
Contentava-se em confiar no todo- virtuoso Tien.
Para ele, a virtude tinha a sua própria recompensa na alegria interior e no
contentamento que trazia. A virtude devia ser praticada por amor à virtude.
Não encontrava a sua justificação nem no receio do castigo nem na esperança
da recompensa, mas simplesmente na aprovação do céu e da consciência de cada
um.
Se definirmos religião, em largos termos, então
Confúcio foi um homem profundamente religioso. Os seus ensinamentos éticos e
o seu humanismo eram firmemente baseados nos mais profundos conhecimentos
religiosos do seu tempo. Para ele, os rituais do culto tinham grande
significado e é por isso que ele insistia em que todo o ritual e cerimônia
eram sem valor se não fossem sinceros. Estava convencido de que havia uma
ordem divina que implicava amor e retidão, e ensinava que na obediência a
essa ordem divina o homem encontraria o seu mais alto bem.
Notas
1. A origem e o significado do Ju têm sido muito
debatidos, especialmente por Hu Shih no seu Lun Hsüeh Chin Chu, Xangai 1935,
pp. 3-81; por Fung Yu Lan in Chung-kuo Chê-hsüeh Shih Pu, Xangai 1934, pp.
28, 59; por Kuo Mo-jo in Ch’nig T’ung Shih Tai, Pequim N.D., pp. 134-6; e
por H. G. Creel in Confucius, the Man and the Myth, Londres, 1951, pp.
313-14.
2. Analects 7:1. Nesta e nas citações
subseqüentes avaliei muitas vezes eu próprio da excelente tradução feita por
A. Waley, The Analects of Confucius, Londres, 1938.
3.Cf. Fung Yu-lan, A Short History of Chinese
Philosophy, p. 207; e W. T. Chan, Rehgious Trends in Modern China, p. 5.
4. Ver, por exemplo, K. L. Reichelt, Religion in
Chinese Garment, Londres, 1951, pp. 45 ff., para uma descrição dos ritos
realizados no Altar do Céu em Pequim, e uma tradução duma prece feita ao
Deus Supremo pelo Imperador no Altar do Céu no solstício do Inverno, em 22
Dez. 1539.
5. Ssu-ma Ch’ien, Shih Chi, capitulo 47.
6. Opiniões acerca de Confúcio podem ser
encontradas no Tso Chuan; Kung-yang Chuan; Ku-liang Chuan; Kuo Yü; Mo-tzu;
Mêng-tzu; Hsün-tzu; no Li Chi; no Ta Tai Ü Chi; no Lü Shih Ch’un Ch’iu; no
Huai Nan Tzu; e também no último Han Shih Waí Chuan; Shang Shu Ta Chuan e no
Shuo Yüan. Encontram-se dizeres hostis a Confúcio em vários escritos
tauístas, onde volta ele a ser referido como tendo feito declarações
tipicamente tauístas. Muita da erudição de Confúcio que não vem nos Analects
acha-se reunida no Kung Tzu Chia Yu.
7. Diversas traduções dos Analectos foram feitas
para inglês. Podem referir-se as de J. Legge (1861), Ku Hung-ming (1898) e
W. Soothill (1910). A mais recente tradução escolar por A. Waley (1938) pode
ser recomendada abertamente, não só devido à felicidade do autor como
tradutor, mas também à introdução inestimável e às notas que muito auxiliam
o leitor inglês.
8. Ver W. T. Chan, Religious Trends in Modern
China, pp. 12 ff. Sobre referências à vida e época de Confúcio ver J. Legge,
The Life and Teaching of Confucius, Londres, 1875; R. Wilhelm, Confucius and
Confucianism, tr. G. H. e A. P. Danton, Londres, 1931; Shigeki Kaizuka,
Confucius, Londres, 1956; H. G. Creel, Confucius, the Man and the Myth,
Londres, 1951.
9. Analectos 7: 20.
10. Analectos 5:12.
11. Existe uma considerável certeza de que
Confúcio ocupou durante algum tempo o cargo de Primeiro Ministro do estado
de Lu. Era um estado pequeno e, dum ponto de vista político,
comparativamente insignificante. Os treze anos de exílio de Confúcio de Lu e
as suas passagens de corte para corte sugerem que os seus talentos nunca
foram reconhecidos adequadamente durante a sua vida, exceto por raros
discípulos íntimos.
12. Cf. Fu Ssu-nien, Hsin Ming Ku Hsün Pien
Chêng, vol. 2, p. 38a. Também H. G. Creel, Confucius, the Man and the Myth,
pp. 129-30.
13. Cf. Ensaio por Ch’ên Ta-chin in K’ung Hsüeh
Lun Chi, Taíwan, 1957, pp. 1-33.
14. Tao Tê Ching, cap. 5.
15. Ver Dobson, Mencius, Oxford, 1963, p. 194,
nota 37: “A palavra li que traduzi diversamente como ‘ritos, propriedade,
cortesia, protocolo, ou boas maneiras’ conforme a ocasião, revela
estritamente um rito, uma forma de proceder adequada às cerimônias solenes
do sacrifício, das cerimônias fúnebres, da aquisição da puberdade e do
casamento. Mas também revela as regras que o decoro e a decência sugerem nas
relações sociais, ou aquilo a que chamaríamos etiqueta... Li relacionou-se
igualmente com os aspectos formais do cerimonial nos tribunais e no
intercâmbio diplomático, ao qual em anos recentes nós passamos a designar
por protocolo”.
16. Cf. A. Waley, The Analects, Londres, 1938,
pp. 54 ff.