A Religião Primitiva CHINESA

por William Morton

A religião da China tem sido normalmente descrita como tendo origem no culto dos antepassados, mas isso é apenas uma verdade parcial. O culto ancestral está presente desde o tempo mais remoto de que se tem registro, mas apenas como um dos elementos da religião chinesa. O outro elemento é o culto dos espíritos da Natureza.
Os chineses encararam o enigma da vida humana através da suposição de que Uma pessoa tem duas almas, a po, alma animal ou alma da vida, e a hun, alma espiritual ou alma da personalidade. Ambas as almas separam-se do corpo coma morte e ambas podem ser mantidas vivas por meio de sacrifícios que as alimentem. A alma da vida, entretanto, gradualmente decai com o corpo; a alma da personalidade sobrevive por tanto tempo quanto seja lembrada e receba sacrifícios dos vivos. Ela pode tornar-se uma divindade de poder e influência, pode responder, nos processos de adivinhação, às questões e pedidos de seus descendentes, e pode até adiar suas mortes. Se a alma po for negligenciada, poderá tornar-se um demônio- um guio -, e perseguir os vivos, ao passo que, se a alma hun for esquecida, irá tornar-se um fantasma piedoso, mas também capaz de causar o mal. Daí a importância capital de ter descendentes do sexo masculino que realizem os sacrifícios ancestrais da família. A queda de uma dinastia ou de um reino é descrita nos textos históricos chineses pela frase: "Interromperam-se os sacrifícios”.
O Ser Supremo foi possivelmente concebido como o Ancestral Supremo, pois os mundos dos homens e dos espíritos estavam em estreita conexão. Sob os Shang o Ser Supremo era conhecido como Shang Di, o Senhor do Alto, mas, sob os Zhou, o termo usado era Tian, o Céu. No decurso dos tempos, Tian passou a ter considerado como o guardião da ordem moral do universo.
Além dos ancestrais, certos espíritos da natureza também eram honrados na China antiga. Durante a dinastia Shang, a Mãe do Oriente, a Mãe do Ocidente, o Soberano das Quatro Direções, a Mulher, Dragão, o Espírito da Serpente e o Vento são citados como divindades que deveriam ser reverenciadas. A mera menção desses nomes basta para indicar que se trata de espíritos da Natureza e de deuses da fertilidade. O solo de loesse do Norte da China só é muito fértil quando recebe chuva suficiente. Por outro lado, vimos que o rio Amarelo, correndo pela terra do loesse, constrói seu leito, depositando limo acima do nível do solo circundante; quando ocorrem cheias, o dano é enorme e extensivo. Desse modo, percebia-se facilmente que o equilíbrio da Natureza, entre o excesso e a escassez de chuva, era delicado; o Filho do Céu tinha o dever de preservar esse equilíbrio, efetuando sacrifícios não somente ao Céu, mas também aos deuses da terra. As formas mais imperfeitas e primitivas de culto às forças da vida constituíram um estorvo para os austeros eruditos confucianos das épocas posteriores, que envidaram esforços no sentido de minimizá-Ias ou modificá-Ias. Mas a presença desse elemento de culto da Natureza, com ênfase na fertilidade, está claramente atestada tanto na China como no resto do mundo. As representações gráficas para zu - ancestral- e she - deus do solo - contêm um símbolo fálico. Ambas as formas de culto gozaram de honra igual, com altares colocados a leste e a oeste da entrada do palácio, como se destinados a assegurar boas colheitas de filhos para os ancestrais e de grão para os campos.
O Livro das Canções, que reflete a sociedade antes do tempo de Confúcio, contém muitas canções de galanteios, que indicam uma relação entre os sexos muito mais livre e natural do que a que se constata em época posterior. Por exemplo:
Cresce no bosque uma trepadeira,
Uma densa camada de orvalho desce sobre ela.
Havia um homem tão encantador,
Sua testa limpa era bem delineada...
Encontrei-o por acaso,
E ele fez minha vontade...
Cresce no bosque uma trepadeira,
Uma espessa camada de orvalho desce sobre ela.
Havia um homem tão encantador,
Sua testa limpa era bem delineada...
Encontrei-o por acaso:
"Oh, Senhor, é tão bom estarmos juntos!"
[Livro das Canções, Mao 94 por A. Waley]
Em outro poema desse livro, diz uma mulher:
Perto da amendoeira da Porta Oriental,
Onde há uma fileira de casas.
Não é que eu não o ame,
Mas que lento você é em cortejar-me!
[Ibid. Mao 89]
Eruditos posteriores trataram o Livro das Canções do mesmo modo que os cultos primitivos, tentando expungi-lo de todos os seus elementos mais grosseiros. Empenharam-se em dar às canções de galanteio e casamento um sentido alegórico destinado a inculcar virtudes como a lealdade a um príncipe, muito à maneira do significado alegórico atribuído à canção bíblica do amor a Canção de Salomão, no Ocidente.
À proporção que se desenvolviam as práticas religiosas chinesas, é interessante notar a ausência de uma classe sacerdotal, gozando de uma posição de poder na sociedade. Havia conselheiros em matéria de ritual e etiqueta, mas os sacrifícios e os próprios serviços de culto eram realizados por funcionários do Estado ou por chefes de família, conforme o caso. Entre os animais sacrificados figuravam bois, ovelhas, porcos e cachorros, geralmente em pequenas quantidades (menos de dez cabeças, de cada vez). Há notícia de um "grande sacrifício" oferecido a três antigos reis, no qual se abateram 300 cabeças de gado. Do símbolo que representa li, “ritual", "cortesia", depreende-se que oferendas de flores eram igualmente feitas. O vinho, quando oferecido, era despejado no solo, em libação. As oferendas eram geralmente queimadas, mas também enterradas ou atiradas n'água. As pessoas ricas, ao atravessarem um certo rio, costumavam lançar n'água um anel de jade, como dádiva ao espírito do rio. Os pobres congregavam-se para celebrar o festival de um rio, durante o qual uma linda moça era escolhida e despachada num barco, rio afora, até que se afogasse como a "noiva do rio". Contudo, o sacrifício humano foi praticamente abolido no fim do período Zhou.
Cumpre salientar que as pessoas comuns não tomavam parte nas cerimônias de culto ancestral, as quais estavam reservadas às famílias da alta sociedade, correspondente à classe das gentes na antiga Roma. A camada popular, na China, não tinha sequer sobrenome e, muito menos, ancestrais conhecidos. Seus costumes religiosos, inclusive os do casamento, eram completamente diferentes dos da classe alta. O povo não celebrava ritos individuais de casamento, mas participava nos festejos coletivos da primavera. Se uma moça desse mostras de gravidez no outono, ela e seu homem passavam a viver maritalmente por um ajuste reconhecido por ambas as famílias e pela comunidade. A religião do homem do campo era marcada pelo culto às divindades locais do solo e da fertilidade, e por ritos xamânicos que envolviam espíritos mediúnicos, exorcistas ou feiticeiros chamados WU, que executavam danças frenéticas. Esse elemento xamânico, encontrado em todo o Nordeste da Ásia, inclusive no Japão, foi desde cedo eliminado das práticas religiosas da classe alta, cujos cultos se dirigiam basicamente ao Céu (culto reservado ao soberano), à Terra, aos deuses do solo e das colheitas e aos espíritos dos rios e das montanhas, além de seus respectivos ancestrais. Foi a um homem da pequena aristocracia rural, unido por práticas religiosas e atitudes sociais, e não ao povo chinês como um todo nem aos estrangeiros, que Confúcio se referiu, quando disse: "Todos, dentro dos Quatro, Mares, são seus irmãos” [Analectos, XII, 5]. A frase é de certo modo universalista, mas não chega ao ponto freqüentemente presumido por idealistas modernos. Confúcio estava também representando o grupo dos "cavalheiros" e sua desvinculação do xamanismo popular e das formas supersticiosas de religião, quando se diz dele que "nunca falava de prodígios, de provas de força, de desordens ou espíritos [shen, deuses]” [Analectos, VII, 20]. Essa frase foi igualmente mal compreendida, já que se pensou que Confúcio se opunha à religião como um todo, o que está longe de ter sido a verdade. Como um exemplo em contrário, ele parecia encarar a moralidade como dotada de alguma forma de sanção religiosa, pois disse: "Quem ofende o Céu não terá a quem rezar”. [Analectos, III, 13]

 

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